A origem do futebol feminino: uma história de desigualdade

De atração de circo a potencial econômico, o futebol jogado por mulheres ainda encontra obstáculos em pleno século XXI

Quem nunca ouviu alguém falando que o futebol jogado por mulheres é ruim? Que recebem menos porque são piores? Ou ainda, que não tem graça? É comum rebatermos com um -mas também não é bonito ver os homens jogando, e isso apenas dá continuidade a um debate sem fim que distancia as torcidas e amantes do esporte.

No final século XIX, mulheres que jogavam futebol eram consideradas um show de circo, sendo de fato uma atração, já que suas partidas aconteciam durante o espetáculo. Durante o mesmo período, homens de classe alta, em sua maioria universitários, já organizavam campeonatos com torcida. Mas as mulheres não puderam continuar jogando, aprimorando, ganhando espaço e atenção. Em abril de 1941, durante a presidência de Getúlio Vargas, foi-se criado o Decreto-Lei 3199, proibindo a “prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina”, entre eles o futebol.

Dizia a lei: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos (CND) baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”.

Segundo a pesquisadora Katia Rubio, da Universidade de São Paulo (USP), a proibição da prática esportiva feminina no Brasil deixou graves consequências, que atrasaram a história olímpica do país, mesmo depois que deixou de vigorar o decreto da Era Vargas.
Em 1965, durante o regime militar, a proibição ficou mais clara com a decisão do general que presidia o CND:

Não é permitida [à mulher] a prática de lutas de qualquer natureza, do futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, polo, rugby, halterofilismo e baseball — Deliberação n. 7 do Conselho Nacional de Desportos”

Assim, além do pré-conceito, durante mais de 20 anos, a mulher que jogasse também poderia ser presa. Enquanto isso, os homens ganhavam os campos e a atenção de grandes empresas que viam no futebol uma vitrine que crescia cada vez mais. As táticas, técnicas e conhecimento de jogo eram disseminadas entre os homens e bastava a mulher ficar em casa, com os filhos, ou ir contra a lei e arriscar a sua liberdade e até mesmo a vida.

Jornal no museu do futebol em SP — Foto: arquivo
Jornal no Museu do Futebol – Foto: Arquivo

Apenas no fim da década de 1970 foi revogada a lei que proibia as mulheres de jogarem futebol. Era o início de uma nova jornada para a modalidade entre as mulheres. No entanto, a categoria não recebeu nenhum estímulo de clubes e federações, não foi regulamentado, e seguiu sofrendo repressões da sociedade.

Apenas em 1983, a modalidade foi regulamentada. Com isso, foi permitido que se pudesse competir, criar calendários, utilizar estádios e ensinar o esporte para meninas nas escolas. Há apenas 38 anos temos, legalmente, mulheres em campo no Brasil, é pouquíssimo tempo para estabelecer times, jogadoras e campeonatos de qualidade igual vemos na Europa, por exemplo. Mas, mesmo assim, poderíamos estar muito além do que hoje estamos. A história ensina, mas muitas vezes quem deveria ajudar a diminuir a disparidade prefere fechar os olhos.

A partir de 2019, todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro foram obrigados pela CBF a terem uma equipe feminina adulta e uma de base, que disputem ao menos um campeonato oficial. A medida faz parte do Licenciamento de Clubes, documento que regula a temporada de competições profissionais no país, e segue a orientação da Conmebol, que adota a mesma regra para clubes participantes de Libertadores e Sul-Americana. A obrigatoriedade forçou dirigentes a olharem para as meninas, mas também expôs a vulnerabilidade da categoria. Grandes clubes optaram pela parceria com pequenos times, fazendo com que grandes goleadas acontecem nos campeonatos, pois é isso que acontece quando se coloca um clube-escola contra um time já formado, aliado com uma inicial falta de organização dos campeonatos.

De fato, foi um grande avanço literalmente a fórceps, mas ainda há muito o que se conquistar. Os primeiros passos para a profissionalização do futebol feminino aconteceram em 2015, pelo time do Santos, mas apenas algumas jogadoras do elenco tiveram a sua carteira assinada, sendo a sua maioria trabalhando por contrato, o que acontece até hoje com a grande maioria dos clubes. Isso faz com que a atleta jogue apenas na temporada, passando o tempo off sem nenhum vínculo ou treinamento. Em 2020, o Corinthians profissionalizou todo o elenco, e fez com que o investimento no time feminino mais que dobrasse, com todos os pagamentos que o regime CLT pede. A profissionalização do futebol masculino no país, no entanto, data da década de 1930, mais de 80 anos antes.

É claro que os salários tem uma grande diferença, e assim vai continuar, até os patrocínios chegarem cada vez mais. Para isso, é preciso continuar com a mudança de cultura que domina o Brasil, onde as famílias veem nos meninos dos campos de várzea um investimento no futuro, e colocam as meninas como responsáveis pelo lar. Cultura significa todo aquele complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano.

A Copa Mundo Feminina na França, em 2019, nos mostrou que o futebol feminino pode sim ser lucrativo para as marcas, reforça a mensagem de apoiadores da igualdade de gênero e conquista um público que é a maioria do mundo, já que as mulheres representam 51% da população mundial. Mas esse investimento não pode ser apenas em épocas de grandes eventos, e a continuidade do patrocínio ajuda a garantir o treinamento e condicionamento físico fora das temporadas.

Há algumas semanas, outro marco histórico: o primeiro patrocinador EXCLUSIVO da Seleção Feminina. Claro que agrega muito para a imagem da empresa, que viu os seguidores nas redes sociais aumentarem após o anúncio da parceria.

É preciso imprensa, é preciso marcas, é preciso um clube que primeiro invista para depois receber os frutos. É necessário olhar para o futebol feminino. Existe uma lacuna de, no mínimo, 40 anos entre homens e mulheres que jogam futebol, e essa disparidade caminha a passos curtos e lentos em direção a igualdade. O futebol feminino não merece mais sobre viver. Merece correr, em velocidade máxima, em direção ao gol, aos espetáculos e a glória, com a garra e a emoção que só é possível ver quando entra em campo, junto com as jogadoras, uma história de luta, lágrimas e resistência.

Foto de destaque: Sam Robles/CBF

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